Bem vindos a mais um DIA DA HERESIA. Este é um espaço utilizado para se falar tudo que for relevante a respeito de um tema controverso específico que envolva a religião, apresentando minha opinião como ateu. O dia da Heresia ocorre todo terceiro domingo de cada mês.
E o tema desse mês será:
LEGALIZAÇÃO DO ABORTO
Este tema é provavelmente o mais polêmico envolvendo sociedade, legislação e religiosidade. Mesmo fora dos círculos religiosos, ele ainda suscita divergências. A legalização do aborto está longe de ser um assunto unânime mesmo entre ateus e agnósticos. Eu já vi descrentes defendendo o aborto em qualquer ocasião, em casos específicos ou condenando-o sob quaisquer circunstâncias.
O que é uma situação compreensível. Ao se debater o aborto, dois princípios muito importantes estão sendo colocados na balança: o direito à liberdade e o direito à vida. Discussões defendendo qualquer posição serão – e devem ser – sempre aprofundadas.
Nesse post eu tentarei apresentar meu ponto de vista sobre o assunto, mas já o faço com a certeza de que haverá quem discorde de mim. Em minha defesa, eu posso afirmar que, ao contrário dos religiosos, as conclusões que eu apresentarei aqui foram baseadas pura e simplesmente no racionalismo e no bom senso, mas se alguém sentir a necessidade de deixar seu pensamento a respeito do tema, sinta-se livre para utilizar o espaço de comentários abaixo.
Normalmente quando se envolve a religião neste assunto, longe de se examiná-lo racionalmente, se acaba por aplicar uma série de dogmas e crenças particulares, esperando-se que o Estado e o resto da sociedade os sigam como verdades absolutas. A situação em análise per se é ignorada, para se dar maior ênfase ao que uma determinada doutrina religiosa professa, ainda que sem nenhuma evidência para apoiá-la.
Essa imagem, veiculada em um site que desaprova o aborto, resume bem a maneira como alguns religiosos enxergam esse assunto: realizar um aborto é equivalente a assassinar uma criança inocente, e, portanto, deve ser proibido (e, aparentemente, a culpa da realização de abortos é dos cientistas). Não é difícil perceber que essa visão do tema não parece ter tido a preocupação de examiná-lo profundamente, apelando para a emotividade e/ou a fé cega para justificar seu posicionamento.
Para se fazer uma análise mais aprofundada do assunto, precisamos, primeiramente, deixar claro o que é o aborto. Embora possa parecer um conceito óbvio, sua simples definição já é relevante para que algumas pessoas se posicionem a seu respeito. Abortar ou interromper a gravidez é expulsar o embrião ou feto do útero materno, resultando em sua morte. Por envolver o término de uma vida em potencial, deliberado ou não, é obviamente um procedimento que demanda um grande debate ético.
Uma discussão sobre a ética diz respeito basicamente ao sofrimento. As ações tomadas por cada ser humano podem influenciar na vida dos outros, e as proporções e consequências dessa influência, se ela causa sofrimento ou não, são exatamente o campo de estudo da ética.
Portanto, não há necessidade de rodeios ou eufemismos aqui. Não vou tentar dourar a pílula e isso nem é necessário para chegar às minhas conclusões sobre o assunto: abortar é matar um ser vivo. E ponto. Mas, como eu tentarei demonstrar, em algumas situações, as mortes de seres vivos são justificáveis. A grande questão passa a ser, então, quando seria eticamente justificável fazermos isso.
Nesse sentido, talvez a mais relevante pergunta que se poderia fazer em relação ao tema é: por que alguém iria querer realizar um aborto? Conservadores extremistas podem argumentar que isso não deveria fazer diferença nenhuma no posicionamento a respeito da liberação do procedimento, já que, independente do motivo, uma vida humana está sendo retirada, e nada justificaria isso.
Esse pensamento já se mostra equivocado quando se constata que, independente do que se pense a respeito do aborto, existem sim motivos que justificam a retirada de uma vida humana. Nossa própria Constituição garante ao Estado o direito de aplicar a pena de morte em alguns casos extremos e o Código Penal prevê situações em que o ato de matar deliberadamente outro ser humano não pode nem ser considerado crime, como em casos de legítima defesa ou estado de necessidade.
Além disso, não é difícil conhecer pessoas que se posicionam ferrenhamente contra o aborto, mas defendem a execução sumária da pena de morte a criminosos quando suas barbaridades são exibidas na mídia. Assim, pode-se perceber que o direito à vida passa a não ser uma coisa tão absoluta como afirmam, devendo ser aplicado a algumas pessoas, mas não a outras.
As nossas leis atuais já prevêem a possibilidade de aborto em duas situações: quando a intervenção é necessária para se salvar a vida da mãe, ou quando a gravidez é resultante de um estupro, desde que tenha o prévio consentimento da gestante.
Embora a necessidade do procedimento pareça óbvia nas duas situações, ainda há religiosos que se opõem a ele mesmo nesses casos. Em agosto do ano passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou uma lei que obrigava os hospitais a prestarem atendimento integral e interdisciplinar às mulheres vítimas de violência sexual. A lei garantia, entre outras coisas, o acesso a pílulas do dia seguinte, para evitar que as vítimas engravidassem do estuprador.
Não tardou muito para que grupos que se autointitulam como “pró-vida” ou “pró-família”, compostos em sua maioria por representantes evangélicos e católicos, surgissem diante do Palácio do Planalto em protesto, alegando que tal lei estaria legalizando o aborto no Brasil.
Não sei se esses grupos estavam mais motivados por má-fé ou por pura ignorância, mas o protesto deles logo de início já não fazia o menor sentido. O código penal, a lei que autoriza o aborto nos dois casos mencionados acima, existe desde 1940. Ao sancionar a nova lei, a presidente não estava tentando legalizar aborto nenhum, afinal eles já eram legalizados há 73 anos! Só se estava tentando regularizar uma forma de se cumprir de modo mais efetivo e seguro o que a legislação já autorizava.
Afinal, ainda que não ingerisse a pílula do dia seguinte, se uma gestante comprovasse que sua gravidez era resultado de um estupro, ela poderia abortar mais tarde, legalmente e através da rede pública, só que por meio de um procedimento bem mais caro para o Estado e traumatizante para todos, e com mais riscos à sua saúde. Ou seja, quem estava protestando contra a nova lei estava na verdade exigindo que o Estado gastasse mais dinheiro público com a saúde e ocupasse mais médicos desnecessariamente. Obviamente, os líderes religiosos por trás dos protestos tinham ciência disso, mas eles precisavam de uma causa supostamente nobre para consolidar o domínio sobre seus fiéis e estabelecer o poder de suas religiões sobre os políticos do país.
Em qualquer país sério, esses dois casos em que o aborto já é permitido nem precisariam ser discutidos, mas como, aparentemente, alguns religiosos são obtusos demais para reconhecer sua necessidade, achei relevante tratar brevemente deles aqui também.
A interrupção da gravidez quando esta afeta a vida da gestante, por mais triste que seja, é autorizada e até incentivada pelo Estado por motivos lógicos e fáceis de serem compreendidos. Olhando-se de uma maneira puramente objetiva, para a sociedade de uma maneira geral, e, portanto, para o Estado, é muito mais vantajoso que, tendo que escolher entre a vida da mãe e a do feto, a primeira receba prioridade.
Uma mãe que engravidou já tem uma vida formada. Há grandes chances de se tratar de uma pessoa adulta, com uma família, uma história, um emprego e uma utilidade para a sociedade, ao passo que, sendo salvo em seu lugar, seu filho já cresceria sem um de seus genitores e ainda requereria uma série de investimentos, seja material, educacional ou de qualquer outra natureza, para chegar à mesma situação social que a mãe já possui. Sem contar que a mãe já estabeleceu vínculos emocionais com um grande número de pessoas: parentes, amigos, colegas de trabalho, vizinhos etc, enquanto um bebê ainda não nascido está vinculado basicamente a seus familiares. Até burocraticamente falando é mais fácil administrar a morte de um feto que a de um adulto formado, já que pessoas não nascidas não possuem sucessores ou bens para legar. Assim, analisando-se friamente, se a infeliz escolha entre a morte de um feto ou de sua genitora tiver que ser feita, ela parece ser óbvia.
Quanto à gravidez advinda de um estupro, qualquer um que defenda que a mãe deve ser obrigada a manter o filho, com certeza não possui a mínima empatia, a capacidade de se colocar no lugar da outra pessoa. Novamente os grupos “pró-vida” vêm afirmar que, independente do motivo, o aborto é um assassinato, uma crueldade, que eles são a favor da vida em qualquer situação… e ignoram completamente a situação da mãe nesses casos.
Afinal, se o aborto seria considerado por eles uma crueldade, também me parece ser imensamente cruel obrigar as mães a carregarem o filho de seu violentador no ventre durante nove meses, sentir as dores do parto por ele, investir boa parte de seu tempo e dinheiro nesse filho e criá-lo pelo resto da vida lembrando da violação e constrangimento pelos quais ela passou, cada vez que olhar para seu rosto. Para algumas mães a morte seria melhor que essa opção. Me pergunto se os integrantes do “pró-vida” continuariam pensando desta maneira se as mulheres nessa situação fossem suas mães, filhas ou irmãs. E imagino como seria a relação entre mãe e filho nesse caso. No final das contas poderia até acabar sendo uma crueldade também para a própria criança permitir que ela viesse ao mundo sob essas condições.
Pode ser que uma vítima de estupro tenha a grandeza de espírito de conseguir criar o filho da pessoa que a estuprou sem deixar que esse fato influencie em sua criação. Ou que uma gestante que corre risco de morte com sua gravidez tenha o altruísmo de se dispor ao sacrifício para garantir que seu filho nasça. Talvez elas consigam ser felizes assim, e, o que algumas pessoas parecem ser incapazes de compreender é que, se elas quiserem, elas podem tomar essas decisões. A lei na verdade não obriga ninguém a realizar abortos. Ela só lhes dá a opção de realizarem o procedimento se acharem que devem fazê-lo.
Cada ser humano sabe o que lhe convém, o que eles aguentam ou o que não aguentam. E a única pessoa que deveria ter o direito de saber o que fazer com o feto em um caso de uma gravidez de risco ou resultante de um estupro é a mãe que carrega esse filho no ventre. Só ela sabe o que será capaz de suportar. E é por isso que os grupos que se opõem aos “pró-vida” intitulam-se como “pró-escolha”, não apoiando o aborto em si, mas a escolha da mulher. Eles não necessariamente querem que o aborto seja realizado, e sim que a gestante tenha o direito de decidir, seja pelo aborto ou pela manutenção do filho.
Assim, eu só posso supor que os extremistas e religiosos não são exatamente contra o aborto. Se fossem, para eles as leis não fariam diferença nenhuma. Quem acha que sua religião proíbe determinado procedimento simplesmente não o realiza, independente do que a lei diga. Não se vê nenhuma testemunha de jeová reclamando que a transfusão de sangue é permitida, ou judeus ortodoxos protestando contra a permissão de ingestão de carne de porco. Para eles, essas práticas são proibidas e eles simplesmente não as fazem. Da mesma maneira, nenhum religioso seria obrigado a realizar o aborto, mesmo nas situações permitidas por lei, se não quisesse. Porém, eles não querem que o contrário seja aplicável. Se alguma mulher não segue determinados preceitos religiosos e quer aplicar a lei, realizando o aborto, os religiosos a vêem como uma abominação, fazendo o possível para impedir o procedimento.
O que me parece então é que esses religiosos que se posicionam tão fervorosamente contra o aborto, mesmo nesses casos óbvios, estão longe de estarem interessados em defender a santidade da vida. Afinal, em um país onde a taxa de homicído é maior que a de alguns países em guerra civil, o que não faltam são outras áreas onde se poderia defender a vida sem maiores oposições. O que eles parecem querer é se posicionar contra a liberdade de escolha das mulheres, reforçando o papel submisso legado ao sexo feminino pela religião, ou impor à força seu ponto de vista sobre o resto da nação. É bem provável que, como o Dr. Dráuzio Varella já disse uma vez, “se os homens parissem, o aborto seria legalizado há muito tempo, e no mundo todo“.
Então, ok, isso cobre os casos de abortos permitidos pela lei. Mas, e quando a situação da gestante não se encaixa em nenhuma dessas previstas no Código Penal? Quando ela simplesmente está grávida e não deseja ter o filho? Nesses casos, posicionar-se a favor do abortamento não seria adotar uma posição meramente “pró-aborto”, ou a favor do assassinato de crianças inocentes?
Bom, aí a situação merece um outro tipo de análise. Como eu disse no começo do post, a discussão acerca do aborto é uma discussão ética, logo, requer o dimensionamento do sofrimento causado pela atitude em exame. Condutas como matar, roubar, caluniar ou quaisquer outros comportamentos proibidos por lei são eticamente reprováveis por um simples motivo: elas causam sofrimento a outras pessoas, em algum nível.
Para nos posicionarmos em relação à liberação do aborto então, teríamos que averiguar se ele causa algum tipo de sofrimento aos fetos abortados. E para fazermos isso objetivamente, temos que lançar mão da biologia.
O sofrimento é geralmente caracterizado como um sentimento de dor, infelicidade ou alguma emoção negativa advinda de determinada experiência. Mas para que o ser humano (ou qualquer outro ser vivo) consiga sentir isso, é necessário que ele seja dotado de membros ou sistemas orgânicos que permitam essas sensações.
No caso do homem, o responsável por essa área é o córtex cerebral, que também é a área que nos torna capazes de adquirirmos consciência. Se você consegue pensar em si mesmo como indivíduo, emitir opiniões, sentir dor, medo, prazer ou colocar-se no lugar de outras pessoas é somente porque você faz parte da espécie animal que possui o córtex cerebral mais desenvolvido do planeta.
Nos fetos, porém, o córtex não começa a se desenvolver desde o início da concepção. Na verdade, durante as três primeiras semanas de vida, o embrião não passa de um punhado de células. Quando, por exemplo, a pílula do dia seguinte atua no impedimento do prosseguimento da gravidez, o embrião nem pode ser chamado assim ainda, recebendo a denominação de mórula, que não passa de uma massa compacta de células.
O tubo neural, que dará origem ao cérebro e à medula só começará a se desenvolver no final de três semanas. No entanto, o sistema nervoso só pode ser considerado plenamente constituído muito depois. Uma pesquisa conduzida pelo Real Colégio de Obstetrícia e Ginecologia britânico aponta que até as 24 semanas de gestação os fetos não são capazes de sentir dor. Segundo o estudo, as ligações nervosas entre a periferia e o córtex não estão intactas antes desse período, e, mesmo depois das 24 semanas, o feto encontra-se naturalmente sedado, não tendo consciência, devido ao ambiente no interior do útero.
Portanto, qualquer procedimento que se realize em um feto no período anterior às 24 semanas de gestação não é capaz de causar nada que possa ser remotamente considerado como sofrimento, pelo menos não na concepção atribuída a esse termo quando ele é aplicado a seres humanos já formados e conscientes.
Embora os detalhes possam ser questão de debate, qualquer pessoa que veja a questão sob um ponto de vista objetivo não teria dúvidas de que o aborto deveria ser permitido desde que se estabelecesse um limite de tempo razoável para sua realização, digamos, nas primeiras 20 semanas. Essa conclusão é óbvia a partir do momento em que se percebe dois fatos: nesse período o embrião não irá passar por nenhum tipo de sofrimento se o aborto for realizado, e a gestante ou sua família passarão por algum tipo de sofrimento se ele não for. E a janela de tempo, cerca de 5 meses, é mais do que suficiente para a gestante e sua família formarem uma decisão ponderada a respeito.
Um outro aspecto que tem que ser levado em consideração é o da realidade social. Mesmo que a lei não autorize abortos fora dos casos ja mencionados, hoje em dia eles podem ser realizados facilmente, seja em clínicas clandestinas ou com procedimentos caseiros que colocam em risco também a vida da mãe. A exemplo da “guerra contra as drogas”, o fato de a lei não permitir que uma coisa seja feita não tem impedido sua prática pelas pessoas. Se uma mulher estiver grávida e quiser retirar o feto ela o fará, nem que para isso tenha que comparecer a uma clínica duvidosa ou usar um cabide ou agulha de tricô. Assim, a autorização legal para se realizar abortos dentro deste período razoável também serviria para reduzir o número de procedimentos ilegais e caseiros, evitando doenças e mortes desnecessárias em milhares de mulheres, que, além da ameaça à saúde à qual são expostas, hoje ainda correm o risco de serem presas ao realizar o aborto clandestinamente.
Quanto a procedimentos abortivos que tivessem que ser realizados depois desse período de tempo, uma análise mais rigorosa teria que ser realizada, mas utilizando os mesmos parâmetros a respeito do sofrimento. Quando o sistema nervoso do feto já estivesse formado ou em formação final, já haveria a possibilidade de ele sofrer com o aborto. Seria necessário então pesar se esse sofrimento seria justificável ou não diante do sofrimento que a família e o próprio bebê passariam se este nascesse. Afinal, vir ao mundo para ser rejeitado por seus pais, abandonado em uma instituição de adoção ou para passar necessidades em uma família que não tem como sustentar mais um filho pode não ser desejável diante da possibilidade de simplesmente nunca ter existido.
A partir desse ponto, entraremos em uma questão filosófica e metafísica sobre a qual fica mais difícil extrair conclusões incontestáveis. Até mesmo Shakespeare já tinha percebido a complexidade da decisão entre a existência e a não existência quando publicou em seu clássico Hamlet a frase mais famosa da literatura mundial: “Ser ou não ser, eis a questão“.
Será que seria realmente melhor para um feto nascer em meio a um possível sofrimento ou miséria do que simplesmente nunca ter existido, como alguns religiosos afirmam?
Para muitas pessoas, o simples fato de se estar vivo, existindo, não parece ser o suficiente. Certas condições básicas de satisfação precisam ser alcançadas enquanto se existe. Que o digam as milhares de pessoas que buscam diariamente a eutanásia ou que tentam o suicídio. Se eu, particularmente, quando fosse um feto, tivesse a opção de escolher conscientemente entre vir ao mundo para passar por uma série de dificuldades ou nunca existir, ficaria em profunda dúvida sobre o que escolher. Novamente, o nível de sofrimento imposto em cada condição é que irá ditar a escolha mais apropriada.
No entanto, eu imagino que, mais uma vez, uma escola de pensamento fundamentalista ou religiosa não veria dificuldades em se posicionar. “Ora, é claro que viver, ainda que em péssimas condições, é melhor do que estar morto”, diriam eles. Afinal, uma das frases que mais se ouve entre os opositores do aborto é que “todas as pessoas a favor do aborto tiveram pelo menos a chance de nascer. Quem foi abortado, nem isso”.
Um vislumbre do tipo de pensamento disseminado pela religiosidade pode ser visto na edição do periódico Correio Espírita publicada nas bancas neste mês de maio. A reportagem de capa, escrita pelo Dr. Americo Domingos Nunes Filho, tratando do aborto, traz afirmativas que evidenciam o modo como alguns religiosos se posicionam a respeito do tema.
Logo no começo da matéria, o ilustríssimo doutor compara o aborto de um feto de 14 semanas à retirada de uma criança da proteção e do calor de sua residência em uma noite escura e gelada para matá-la a pauladas. E segue equiparando as duas situações, afirmando coisas como:
“[…] O episódio descrito demonstra a incapacidade de algumas pessoas de sentirem piedade de outro ser humano e utilizam argumentos fúteis no sentido de tentar explicar 0 2º crime [o aborto], situando-o como diferente do 1º; contudo, a realidade revela absoluta igualdade nos dois trágicos eventos. Dois seres infantis foram mortos brutalmente […]”
Não é difícil perceber o tom de proselitismo adotado nesse discurso. Difícil mesmo é ignorar a forma como o autor distorce a realidade, tentando forçar duas situações completamente diferentes a serem vistas como semelhantes, apenas para tentar provar seu ponto de vista.
Ora, se, como já foi demonstrado, embriões com 14 semanas de desenvolvimento não são nem mesmo capazes de sentir dor, não há como comparar seu aborto com uma morte a pauladas. E os médicos que realizam o procedimento também não teriam como infligir sofrimento, ainda que quisessem, logo não há o menor sentido em dizer que eles não sentem piedade, tampouco pode se considerar isso como um assassinato brutal. Aliás, desconsiderando-se doutrinas religiosas, não há nem de se falar em “outro ser humano”, já que dificilmente se poderia considerar um grupo de células que não possui sistema nervoso formado como “humano”. O que se considera como humano também pode ser uma questão filosófica complexa, mas eu diria que a existência de um cérebro para abrigar a consciência de si e dos outros e possibilitar os sentimentos e pensamentos seria um pré requisito para essa conceituação.
Fica óbvio que, ao considerar o tema do aborto, os espíritas não se preocupam em incluir as condições do feto na equação, somente suas crenças sobrenaturais. Isso se torna ainda mais evidente quando se percebe que eles defendem a manutenção de fetos anencéfalos no ventre da mãe até o nascimento, sob argumentos vagos como “tudo no universo ocorre por um motivo”, “a fatalidade da morte após o renascimento os reconduz ao mundo espiritual” ou com a desculpa de que, mesmo com apenas uma parte do cérebro o bebê é capaz de viver por algumas horas após a morte. Alegações hipotéticas ou irrelevantes como essas prevalecem sobre o fato indiscutível de que um bebê que nasce sem cérebro ou só com parte dele está fadado a morrer causando enorme sofrimento, não só à própria criança, que provavelmente passará por imensa agonia até perecer, mas também a seus pais e familiares, que terão que assistir a seu filho morrer em dor sem poder fazer nada. Sem contar o risco para a gestante, que aumenta a cada dia que a gravidez anencéfala é levada adiante.
A ausência de atividade cerebral aliás, é entendida pela lei brasileira como a caracterização do momento em que a vida se acaba. É por esse motivo que pacientes com morte cerebral podem ser considerados tecnicamente como mortos, mesmo que o restante de seu organismo seja mantido ativo por meio de aparelhos. Se um ser humano completo, formado, com família e uma história de vida não pode ser considerado vivo sem atividade cerebral, quem dirá um feto.
O posicionamento das religiões brasileiras majoritárias contra o aborto também não conta com fundamentos muito mais convincentes para se justificar, ignorando qualquer tipo de racionalização sobre o tema e valendo-se apenas de crenças no sobrenatural. Passagens da Bíblia, a suposta palavra divina legada à humanidade, ou chavões religiosos são citados a torto e a direito como argumentos: “O sexto mandamento divino nos proíbe de matar“. “Deus abomina o assassinato de crianças inocentes“…
Talvez fizesse bem aos cristãos reexaminar essa imagem de um Deus amoroso para com as crianças, considerando-se que o próprio livro sagrado deles nos dá exemplos de atitudes divinas que parecem não demonstrar muita preocupação de Deus para com as crianças inocentes. Afinal, um deus que supostamente já exterminou toda a humanidade através de afogamento, inclusive crianças e bebês, já matou todos as crianças primogênitas de um país inteiro e já mandou duas ursas destroçarem 42 crianças só porque elas chamaram um careca de careca, não me parece estar particularmente preocupado com o bem estar ou segurança de crianças inocentes.
Aliás, a existência de uma divindade que se importasse muito com o destino de “fetos inocentes” tornaria muito difícil explicar o fato de que a imensa maioria dos abortos em seres humanos acontece espontaneamente, por mero capricho da natureza, ocorrendo em 30 ou 40% do total de gestações, às vezes mesmo quando a própria gestante não sabia que estava grávida. Mas é claro que isso não impede os crentes de realizarem acrobacias mentais na tentativa de encontrar justificativas para isso. Segundo eles, “Deus escreve certo por linhas tortas” ou “Deus dá a vida, então cabe a ele tirar“. Não me parece fazer muito sentido. Eu, particularmente, não vejo porque alguém que, por exemplo, gostasse muito de carros, teria motivos para destruir 40% da matéria prima na linha de produção de uma fábrica de automóveis, mas… eis o mistério da fé!
Felizmente ainda vivemos em um país laico, então o Estado não pode se utlilizar de argumentos teológicos ou interpretações de textos supostamente sagrados como base para sua legislação, somente dados científicos comprováveis.
Pelo menos até o domínio total da bancada evangélica no Congresso. Já estou até sentindo pena de quem tenha um útero no momento em que isso acontecer.