Arquivo da tag: Septuaginta

Leitura Recomendada – A Bíblia Sagrada – Parte 1

A leitura recomendada de hoje é de um livro que eu acho que qualquer pessoa que se considere ateia deveria se dar ao trabalho de conhecer. A Bíblia Sagrada.

A Bíblia Sagrada - Uma das milhares de versões existentes

A Bíblia Sagrada – Uma das milhares de versões existentes

A importância de se conhecer a Bíblia não é tanto em razão do seu conteúdo, e sim pela influência que ela exerce em nossa sociedade.

Escrita (ou compilada) ao longo de séculos, este é com certeza o livro mais importante da cultura ocidental. Independente de se acreditar no que ele diz ou não, sua relevância não pode ser ignorada por ninguém nascido por esses lados do planeta.

Como qualquer obra literária, a Bíblia estimula o imaginário do leitor e tem o potencial de influenciar a forma de se enxergar o mundo. Muitos a leem em busca de uma inspiração para resolver problemas, vencer desafios ou à procura de conselhos sobre como levar uma vida melhor.

No entanto, além do aspecto positivo que sua leitura pode proporcionar, infelizmente há também um inegável prisma negativo que pode advir de seu conteúdo. Graças a passagens dúbias, interpretações controversas e uma fé inabalável dos fiéis em suas palavras, este mesmo livro pode ser utilizado por determinados grupos para justificar posições éticas e comportamentais que dificilmente poderiam ser defendidas por outros meios. Uma boa observação a esse respeito é feita pelo autor estadunidense Sam Harris, em seu livro “A morte da Fé”:

Precisamos começar a falar livremente sobre o que realmente existe nesses nossos livros sagrados […] Um exame mais minucioso desses livros, assim como da história, demonstra que não existe um ato de bárbara crueldade que não seja justificável, ou até mesmo ordenado, por uma consulta às suas páginas. É apenas fazendo grandes acrobacias para evitar certas passagens, cujo status canônico nunca foi questionado, que podemos deixar de assassinar uns aos outros em nome da glória de Deus.

A própria presença da Bíblia entre nós é quase universal. Afinal, ela é, com folga, o livro mais vendido do mundo, com seis bilhões de cópias comercializadas – quase uma para cada ser humano na Terra, superando em mais de sete vezes o número de vendas do segundo lugar, o livro vermelho de Mao Tsé-Tung. Quase todas as casas possuem pelo menos um exemplar. Muitos hotéis disponibilizam uma cópia em seus quartos. Passagens suas são mencionadas em diversas ocasiões, inclusive em discursos políticos, entalhadas em paredes, monumentos e lápides, e há até a possibilidade de se ouvir uma delas nas ruas e nos meios de transporte públicos, entoada por um eventual pregador. Acho muito improvável que qualquer brasileiro tenha conseguido passar a vida toda sem nunca ter ao menos ouvido falar desse livro em algum momento.

No entanto, apesar de sua quase onipresença em nosso convívio, encontrar alguém que tenha efetivamente lido a obra toda é, curiosamente, uma ocasião mais rara. Nem mesmo grupos sociais que se presume serem leitores assíduos do livro sagrado costumam exercer sua leitura completa. Uma pesquisa indica, por exemplo, que metade dos pastores evangélicos nunca leram a Bíblia toda. O mais comum é que se leiam ou memorizem passagens específicas, que podem vir a ser úteis em algum contexto, ignorando-se todo seu restante.

E esse comportamento é compreensível. Como literatura, o livro está longe de ser um primor ou mesmo atraente para um ocasional leitor. Sua narrativa é confusa, enfadonha e  inconsistente. Suas diversas traduções desvirtuaram o sentido de muitas passagens originais, que mesmo que tivessem sido fielmente adaptadas, seriam consideradas anacrônicas perante a sociedade moderna. As histórias contadas para explicar a origem do universo, do ser humano e a trajetória do povo escolhido por Deus – supostamente verídicas – alternam entre o inverossímil e o completamente fantasioso. Uma boa quantidade de tempo é perdido apresentando as árvores genealógicas de famílias hebraicas, o que era fundamental para a sociedade patriarcal baseada em clãs existente à época de sua elaboração, mas que não tem a mínima importância atualmente. E existem diversas contradições no texto, não só entre as diferentes versões do livro, mas em seu próprio conteúdo, como pode ser conferido aqui.

Mas então, por que, mesmo com tantas deficiências e defasagens, a Bíblia conseguiu chegar à época atual conservando tamanha influência perante a sociedade? Para tentar compreender esse fenômeno, primeiro é necessário conhecermos um pouco mais a respeito do livro sagrado e de sua história.

A ESTRUTURA DA BÍBLIA

A bíblia é composta por duas partes principais, o Antigo Testamento, que narra acontecimentos ocorridos antes do nascimento de Jesus Cristo, e o Novo Testamento, que conta os fatos havidos após este evento.

Cada um dos testamentos, por sua vez, é dividido em livros. O antigo possui 46 livros (39 na versão dos protestantes/evangélicos), e o novo possui 27 livros.

Cada grupo de livros da Bíblia tem um propósito específico. Os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, por exemplo, formam o pentateuco (conhecido pelos judeus como Torá), que descreve a criação da Terra e define as leis do povo hebreu. Os 12 livros seguintes contam a história deste povo em busca da terra prometida por Deus, e assim por diante. O quadro a seguir mostra resumidamente a função de cada grupo de livros (clique na figura para aumentá-la):

A HISTÓRIA DA BÍBLIA

Segundo as doutrinas defendidas pela maioria dos religiosos, a Bíblia é a própria palavra de Deus, direcionada à humanidade. No entanto, até mesmo eles admitem que essa palavra só pôde ser colocada no papel por intermédio de homens comuns.

De acordo com a tradição judaico-cristã, cada livro da Bíblia foi escrito por um autor específico, supostamente inspirados pela sabedoria divina. Os profetas seriam, então, uma espécie de secretário que transcrevia o que Deus ditava em suas mentes. O Pentateuco teria sido escrito pelo profeta Moisés, os Salmos pelo rei Davi, e assim por diante. No entanto, a maioria dos pesquisadores da história da Bíblia afirma o contrário: que cada um dos livros foi escrito por diferentes autores, em diferentes épocas sendo, em seguida, compilados em um só texto.

É provável que  o primeiro esboço do que viria a se tornar a primeira parte da Bíblia tenha sido escrito por volta do século 10 a.C., em algum lugar do Oriente Médio, na então chamada Terra de Canaã. Alguém pegou um pedaço de uma planta importada do Egito – o papiro – e começou a escrever uma história a respeito da origem do universo e do homem. Essa história depois foi sendo ampliada, rasurada, revista e editada por diversos outros autores que deram continuidade a esse trabalho.

Região de Canaã, onde surgiram os primeiros esboços da Bíblia.

Canaã não era um Estado organizado, e sim uma região sem fronteiras definidas, por onde passavam várias tribos diferentes. Isso explica a semelhança entre algumas passagens bíblicas supostamente escritas pelos hebreus, e outras histórias fantásticas que rondavam a região, advindas de outros povos. Um exemplo é a história de Noé, que apresenta uma notável semelhança com a Epopéia de Gilgamesh, um poema originado na antiga Mesopotâmia (atual Iraque) que conta a história do semideus Gilgamesh e que contém uma passagem que menciona uma enchente que devasta o mundo, e da qual algumas pessoas são salvas construindo um barco.

É claro que a semelhança entre essas histórias, além de outras que compõem outras culturas, e as narrativas contadas na Bíblia, não significa que o livro sagrado seja uma mera compilação de lendas plagiadas de outros povos. Apenas sugere que os autores dos textos que deram origem à Bíblia eram pessoas variadas, e que alguns deles tinham contato direto com outras culturas da região, sendo inclusive possível que alguns deles até mesmo fossem integrantes de outros povos.

Essa multiplicidade de autores também explica o fato de a Biblia possuir diferentes estilos de escrita ao longo de seus textos. Isso é notável já nos dois primeiros livros, Gênesis e Êxodo. O deus criador da Terra é chamado por dois nomes diferentes, ora sendo tratado por Javé ou Jeová (Yahveh, no original), que seria um tratamento mais informal, ora sendo chamado de Senhor ou Deus (Elohim, no original), que seria um modo mais formal de se dirigir a ele. Segundo os estudiosos do assunto, o fato de haver no mínimo dois autores responsáveis por essas partes seria uma explicação plausível para essa discrepância, já que é improvável que àquela época um mesmo autor fosse se referir a uma divindade de maneiras diferentes em um mesmo texto.

No ano de 589 a.C., Jerusalém, a capital dos hebreus, foi conquistada pelos babilônios, e boa parte de sua população foi levada como prisioneiros de guerra para território babilônico, onde fica o atual Iraque. Algumas décadas depois, o imperador babilônico Ciro, que possuía certa tolerância religiosa, liberou os hebreus, que foram voltando aos poucos para Canaã, porém com sua fé transformada pelo contato com os babilônicos, que seguiam uma religião chamada de masdeísmo.

O masdeísmo, ou Zoroastrismo, religião fundada pelo profeta Zaratustra na antiga Pérsia (atual Irã) em meados do século VII a.C. exerceu considerável influência nos textos bíblicos. A doutrina do Zoroastrismo foi notavelmente a base de praticamente todo o mito da Criação presente na Bíblia, pois foi ela quem concebeu idéias como a de um ser poderoso criando o mundo em seis dias e descansando no sétimo e a formação de um paraíso na Terra, onde foram colocados dois seres humanos que de lá foram expulsos em seguida, e onde também havia uma cobra traidora. O Zoroastrismo também foi o precursor de ideias que viriam a ser fundamentais para a mitologia bíblica, como a do monoteísmo, a ressureição, a dicotomia da luta entre o bem e o mal e a vinda de um messias como prenúncio do juízo final.

Zaratustra, profeta fundador do Zoroastrismo

Representação artística de Zaratustra, profeta fundador do Zoroastrismo

A versão final do Pentateuco tomou forma por volta do século IV a.C., quando um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que editaram os livros já existentes e escreveram a maior parte do Deuteronômio, Números e Levítico, inclusive a famosa parte dos 10 testamentos. A partir dessa reforma, Jeová começa a ganhar um ar belicoso, vingativo e sanguinário, ordenando, inclusive, o extermínio de cidades inteiras em seu nome. Atos que soariam abomináveis a qualquer ser humano moderno parecem aceitáveis ou até mesmo estimulados pela entidade divina hebraica. Aparentemente até mesmo lançar ursos selvagens para destroçar crianças inocentes, cujo único pecado teria sido conhecer outras crianças que zombaram da careca de um profeta:

Então, subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns rapazes pequenos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo, sobe, calvo.

E, virando-se ele para trás, os viu e os amaldiçoou, no nome do SENHOR; então, duas ursas saíram dos bosques e despedaçaram quarenta e dois daqueles pequenos.

II Reis 2, 23-24

Encantador esse deus bíblico, não? Esse rancor gratuito atribuído ao todo poderoso pode ser reflexo do momento histórico que os hebreus passavam, em constantes guerras com seus vizinhos babilônicos e assírios. Assim, o clamor bélico e sanguinário presentes nesta parte das escrituras seria uma forma de estimular os hebreus a se unirem em torno de sua fé contra inimigos que mereciam o desprezo até mesmo de um suposto deus verdadeiro.

A essa altura, a fé também já exercia um grande papel no controle social ao estipular regras que deveriam ser seguidas por todos, algumas para manter a coesão do grupo (como a que proibía o casamento entre hebreus e não-hebreus), outras que supostamente visavam impor a aplicação de atitudes saudáveis (como as que vetavam a ingestão de certos alimentos) e outras que pareciam ser meramente cerimonialistas, sem nenhuma função prática aparente (como a que proibía o uso de vestimentas cerzidas com dois tecidos diferentes).

Por volta de 220 a.C. o conjunto de livros sagrados dos hebreus já estava finalizado e foi realizada então a primeira tradução completa do que hoje é chamado de Antigo Testamento, do hebraico para o grego, na cidade de Alexandria, no Egito, feita por ordem do rei Ptolomeu II. Supostamente realizada por 72 sábios judeus, essa versão ganhou o nome de septuaginta. Além da tradução para o grego, também surgiram versões do Antigo Testamento em aramaico, que era a língua mais comum na região à época.

Após dois séculos, a versão em aramaico do Antigo Testamento (que à essa época obviamente não era conhecido por esse nome) tornou-se muito popular, sendo a mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (atuais Israel e Palestina). E foi nesse ponto que surgiu uma nova personagem bíblica que iria mudar totalmente os rumos dessa história: Jesus Cristo.

E este é um assunto que será tratado em breve, na segunda parte desse post.

ATUALIZAÇÃO: Veja a parte seguinte do post aqui.

5 Comentários

Arquivado em Leitura Recomendada