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Leitura Recomendada – A Bíblia Sagrada – Parte 2

Continuação do post anterior. Veja a primeira parte aqui.

A VINDA E A VIDA DO MESSIAS

Paramos a história da Bíblia em um ponto que viria a trazer fundamentais mudanças não só para as escrituras, mas para a própria humanidade. A vinda de Jesus Cristo ao mundo.

As escrituras sagradas hebraicas que circulavam por Canaã já previam a chegada de um Messias que iria governar o mundo e devolver a paz aos homens. Para os cristãos atuais, esse Messias foi o próprio Jesus Cristo, o filho de Deus, gerado pelo Espírito Santo.

A comunidade judaica, porém, não reconhece Jesus como o Messias prometido, e continua aguardando sua vinda. Por isso os judeus não admitem o novo testamento como parte das escrituras sagradas, já que ele foi escrito com base nos ensinamentos de Cristo. Para eles, os textos sagrados se resumem ao Antigo Testamento e ponto. Aliás, para os judeus nem faz sentido o uso desses termos – Antigo e Novo Testamento – já que em seus textos sagrados, que eles chamam de Tanakh, só há o conteúdo do primeiro.

Para os cristãos, no entanto, a chegada do Messias ao mundo é uma narrativa universalmente conhecida. Pare qualquer adepto do cristianismo na rua e pergunte a ele como foi o nascimento de Jesus e você provavelmente vai ouvir essa história: no dia 25 de dezembro do ano um, uma estrela brilhante surgiu no céu e guiou os três reis magos a um presépio em Belém, onde Maria, uma virgem fecundada pelo próprio Espírito Santo, deu à luz um menino, na manjedoura, entre os bichinhos do presépio. Então, cada um dos três reis magos entregou um presente a Jesus. Depois a sagrada família teve que fugir para o deserto porque o rei Herodes mandou matar todas as crianças com menos de dois anos, com medo de perder o trono para o futuro rei dos judeus.

Como o imaginário popular imagina o nascimento de Jesus

Como o imaginário popular imagina o nascimento de Jesus

É uma bonita história. Pena que esse relato tão conhecido não tenha ocorrido exatamente desta maneira segundo o próprio livro sagrado dos cristãos.

Na verdade, se utilizarmos somente a Bíblia como fonte, fica muito difícil dizer como teria ocorrido exatamente o nascimento de Cristo. Em mais um exemplo das contradições existentes nos textos bíblicos, os evangelistas relatam o fato de maneira distinta. Marcos e João nem chegam a falar do nascimento de Jesus, somente de sua vida adulta. E os relatos de Lucas e Mateus apresentam divergências entre si, alguma irreconciliáveis.

A visita dos famosos três reis magos, por exemplo, não é mencionada nos evangelhos. Mateus relata a visita de magos (sem mencionar o número deles) e Lucas fala simplesmente que pastores no campo vão venerar a criança após receberem a notícia de um ser angelical. O massacre de crianças inocentes narrado por Lucas e supostamente comandado por Herodes após o nascimento de Jesus não só não é encontrado em Mateus, como em nenhum outro evangelho e nem mesmo em qualquer outra fonte histórica da época.

Muitas outras diferenças podem ser encontradas entre uma narrativa e outra. Lucas menciona uma visita de anjos à Maria e à sua vizinha Isabel que não está em Mateus. Mateus relata a fuga para o Egito, a Santa Família desviando da Judeia no retorno a Nazaré, tudo isso ausente em Lucas. Lucas tem o nascimento de João Batista, o censo de César, a viagem a Belém, a manjedoura e a estalagem, os pastores, a circuncisão, a apresentação no templo e o retorno para casa imediatamente depois – tudo isso ausente em Mateus.

Poderia-se argumentar que na verdade cada evangelista está contando uma parte da história. E de fato, a narrativa que se ouve todo mês de dezembro ao se comemorar o natal parece ser uma fusão desses dois evangelhos, com a combinação de detalhes de um e de outro, de modo a criar uma história mais ou menos harmoniosa. Mas o problema é que, ao se fazer isso, se está na verdade criando um terceiro relato dos acontecimentos, que difere dos dois originais, e ignorando os detalhes que não podem ser conciliados entre os dois, como, por exemplo, quem era o governador local, que segundo Mateus era Herodes, e segundo Lucas, Quirino.

Além dessas diferenças, alguns detalhes hoje aceitos como fatos pela maioria dos cristãos nem mesmo são citados na Bíblia. A data de nascimento de Jesus, por exemplo, não é expressamente anunciada em local nenhum. Estudiosos das escrituras apontam que o mais provável é que Jesus tenha nascido próximo ao mês de abril. No entanto, há um motivo para se comemorar o natal no dia 25 de dezembro, do qual eu tratarei futuramente. Até mesmo o ano em que Jesus nasceu não é fácil de ser determinado, graças aos diferentes sistemas de marcação de datas utilizados após o fato, mas é quase certo que, apesar de o nosso calendário atual se basear em seu nascimento, o próprio Cristo tenha nascido entre os anos 6 e 4 antes de Cristo.

Muitas outras partes do novo testamento apresentam o mesmo problema. Ao serem comparadas lado a lado, diversas passagens que deveriam ser iguais ou pelo menos compatíveis entre si, apresentam discrepâncias. A genealogia de Jesus, seu batismo, milagres realizados, a duração de seu ministério, detalhes de sua morte: todos esses fatos e vários outros apresentam versões diferentes, algumas delas diretamente contraditórias, ao longo de todo o novo testamento.

E esse fato é facilmente explicado. Jesus, a exemplo de outros grandes pensadores, como Sócrates e Buda, não deixou registrado por escrito nenhum de seus feitos e ensinamentos. Aliás, alguns historiadores argumentam que isso seria até impossível, pois afirmam que Jesus provavelmente era analfabeto (assim como 90% dos habitantes da região à época). E é bem provável que seus seguidores, quase todos de origem e profissões humildes, a maioria pescadores, também o fossem. A propria Bíblia deixa claro que pelo menos Pedro e João eram iletrados (Atos 4, 13). Especula-se que Mateus, por ter sido cobrador de impostos para o Império Romano, fosse o único dos apóstolos alfabetizado em aramaico, mas mesmo assim, isso dependeria de sua posição hierárquica na administração imperial.

E de qualquer maneira, isso nem é tão relevante, já que todos os textos existentes no Novo Testamento foram escritos décadas ou séculos após Jesus e seus apóstolos terem passado pelo mundo. Inclusive os evangelhos. Apesar de cada um deles receber o nome de um apóstolo, é provável que nenhum dos textos tenha sido efetivamente escrito pelo seguidor que o batiza. O que nos leva a uma interessante pergunta…

QUEM ESCREVEU O NOVO TESTAMENTO?

Nos primórdios de seu surgimento, o cristianismo já era perseguido. O Império Romano, que dominava quase todo o Oriente Médio, considerava os cristãos subversivos por não cultuarem os seus deuses oficiais. Foi nesse clima de perseguição que os primeiros cristãos começaram a colocar no papel as histórias a respeito de Jesus Cristo, que até então eram passadas entre os adeptos da nova religião apenas através da tradição oral.

Por conta dessa atmosfera hostil, dificilmente as pessoas que escreviam a respeito dos ensinamentos de Jesus se arriscavam a serem identificadas assinando sua obra. Os evangelhos, por exemplo, foram todos escritos anonimamente. Os nomes de seus autores foram adicionados depois (“o evangelho segundo Mateus”), provavelmente por dois motivos: para evitar a perseguição aos seus verdadeiros autores e, principalmente, para assegurar aos leitores que as histórias ali contadas eram verdadeiras, tendo sido passadas às futuras gerações por testemunhas oculares dos fatos. No entanto, através da análise dos textos evangélicos originais é possível deduzir algumas coisas a respeito de seus reais escritores.

Em primeiro lugar, há um consenso entre os estudiosos da Bíblia de que quase a totalidade dos textos dos evangelhos originais foram escritos em grego, não em aramaico, como o antigo testamento. A maior parte dos seguidores do cristianismo à essa época não falava grego, eram falantes de aramaico, iliterados e de classe baixa. É bem provável também que os autores originais vivessem fora da Palestina, ou que pelo menos não tivessem muito familiaridade com a região, devido às incongruências geográficas e à ignorância a respeito dos costumes judeus existentes nos textos.

p52 - Um dos poucos pedaços dos evangelhos originais (nesse caso, João), escrito em grego

p52 – Um dos poucos pedaços dos evangelhos originais (nesse caso, João) ainda existentes, escrito em grego antigo

O fato de terem sido escritos por pessoas provavelmente bem instruídas e falantes de grego, de terem estilos diferentes entre si e de que os autores dos textos raramente identificam a si próprios faz com que seja improvável que a maioria dos livros do novo testamento tenha sido escrita por quem se afirma que foi. A maior parte dos estudiosos da bíblia hesita em rotular os textos bíblicos do novo testamento como fraudes – alguns preferem até o eufemismo “pseudoepigráfico”. Mas isso é uma questão de semântica. Sob qualquer ponto de vista é isso que eles são: fraudes. Um grande número de livros dos primórdios do Novo Testamento foram escritos por autores que alegavam falsamente serem apóstolos para enganar os leitores e fazê-los aceitar suas obras e os pontos de vista que defendiam.

Mas então, quem eram, afinal de contas, esses autores?

A verdade é que ninguém tem como saber exatamente quem escreveu o novo testamento. Dos 27 livros que o compõem, somente 8 deles podem ser atribuídos com certo grau de segurança aos autores que se supõem tê-los escritos. Nos primeiros séculos da era cristã o cristianismo estava se espalhando pela Europa, conquistando adeptos no Império Romano. Então é provável que os autores das histórias a respeito de Jesus e de seus discípulos tenham sido cidadãos do Império Romano, pertencentes à uma classe  social relativamente alta e que tinham interesse em converter seus compatriotas à nova religião que eles mesmos haviam acolhido.

O problema é que naquela época os livros não eram redigidos como são hoje em dia. Eles não eram reunidos em um único tomo, organizados, numerados, e encadernados. Na verdade eles não passavam de um amontoado de papiros avulsos, então uma mesma história poderia ter dezenas ou centenas de autores, que depois era unificada como uma colcha de retalhos. Quando muito, os textos da época eram enrolados em forma de pergaminho. Nesse caso então, se você quisesse saber o que seu Deus diz a respeito de algo ou consultar um pedaço específico das escrituras sagradas, tinha que desenrolar um pesado pergaminho até encontrar a passagem desejada. Imagine-se hoje em dia tendo que desenrolar um rolo de papel sempre que quisesse consultar uma parte de um texto…

O máximo de organização literária que você encontraria à época.

O máximo de organização literária que você encontraria à época.

Estas particularidades influenciaram diretamente no conteúdo do texto bíblico. Para manter a circulação das histórias a respeito de Jesus, a despeito dos extravios e deteriorações dos textos, os evangelhos eram continuamente copiados e recopiados por membros da igreja. Só que, como isso era feito manualmente por várias gerações de copiadores, diversas alterações acabavam sendo introduzidas nos textos originais, às vezes por descuidos, às vezes por erros de traduções e às vezes propositalmente, para se apoiar o posicionamento de quem transcrevia as cópias .

Um exemplo disso é a passagem em que Jesus salva a mulher adúltera do apedrejamento (João 8, 3-11).  Segundo especialistas, esse trecho foi inserido no evangelho de João por volta do século 3, por algum escriba. Isso porque o cristianismo estava divergindo do judaísmo e o apedrejamento de adúlteras era uma das leis judaicas presentes no Pentateuco. Assim, podia se passar a ideia de que, a partir de então, os ensinamentos de Cristo haviam superado até mesmo as leis judaicas.

Por volta do século 4, os textos sagrados começaram a tomar a forma de códice, um conjunto de folhas encadernadas mais parecido com os livros atuais. Isso fez com que o controle do conteúdo da Bíblia fosse mais fácil de ser mantido. Junto a esse fato, um outro acontecimento inesperado deu uma nova cara ao livro sagrado e de quebra ainda fez com que o novo movimento religioso deixasse de ser um mero culto e se transformasse na religião mais importante da cultura ocidental: a conversão de um imperador romano ao cristianismo. Mas isso já é um assunto para o próximo post…

ATUALIZAÇÃO: Veja a última parte do post aqui.

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Leitura Recomendada – A Bíblia Sagrada – Parte 1

A leitura recomendada de hoje é de um livro que eu acho que qualquer pessoa que se considere ateia deveria se dar ao trabalho de conhecer. A Bíblia Sagrada.

A Bíblia Sagrada - Uma das milhares de versões existentes

A Bíblia Sagrada – Uma das milhares de versões existentes

A importância de se conhecer a Bíblia não é tanto em razão do seu conteúdo, e sim pela influência que ela exerce em nossa sociedade.

Escrita (ou compilada) ao longo de séculos, este é com certeza o livro mais importante da cultura ocidental. Independente de se acreditar no que ele diz ou não, sua relevância não pode ser ignorada por ninguém nascido por esses lados do planeta.

Como qualquer obra literária, a Bíblia estimula o imaginário do leitor e tem o potencial de influenciar a forma de se enxergar o mundo. Muitos a leem em busca de uma inspiração para resolver problemas, vencer desafios ou à procura de conselhos sobre como levar uma vida melhor.

No entanto, além do aspecto positivo que sua leitura pode proporcionar, infelizmente há também um inegável prisma negativo que pode advir de seu conteúdo. Graças a passagens dúbias, interpretações controversas e uma fé inabalável dos fiéis em suas palavras, este mesmo livro pode ser utilizado por determinados grupos para justificar posições éticas e comportamentais que dificilmente poderiam ser defendidas por outros meios. Uma boa observação a esse respeito é feita pelo autor estadunidense Sam Harris, em seu livro “A morte da Fé”:

Precisamos começar a falar livremente sobre o que realmente existe nesses nossos livros sagrados […] Um exame mais minucioso desses livros, assim como da história, demonstra que não existe um ato de bárbara crueldade que não seja justificável, ou até mesmo ordenado, por uma consulta às suas páginas. É apenas fazendo grandes acrobacias para evitar certas passagens, cujo status canônico nunca foi questionado, que podemos deixar de assassinar uns aos outros em nome da glória de Deus.

A própria presença da Bíblia entre nós é quase universal. Afinal, ela é, com folga, o livro mais vendido do mundo, com seis bilhões de cópias comercializadas – quase uma para cada ser humano na Terra, superando em mais de sete vezes o número de vendas do segundo lugar, o livro vermelho de Mao Tsé-Tung. Quase todas as casas possuem pelo menos um exemplar. Muitos hotéis disponibilizam uma cópia em seus quartos. Passagens suas são mencionadas em diversas ocasiões, inclusive em discursos políticos, entalhadas em paredes, monumentos e lápides, e há até a possibilidade de se ouvir uma delas nas ruas e nos meios de transporte públicos, entoada por um eventual pregador. Acho muito improvável que qualquer brasileiro tenha conseguido passar a vida toda sem nunca ter ao menos ouvido falar desse livro em algum momento.

No entanto, apesar de sua quase onipresença em nosso convívio, encontrar alguém que tenha efetivamente lido a obra toda é, curiosamente, uma ocasião mais rara. Nem mesmo grupos sociais que se presume serem leitores assíduos do livro sagrado costumam exercer sua leitura completa. Uma pesquisa indica, por exemplo, que metade dos pastores evangélicos nunca leram a Bíblia toda. O mais comum é que se leiam ou memorizem passagens específicas, que podem vir a ser úteis em algum contexto, ignorando-se todo seu restante.

E esse comportamento é compreensível. Como literatura, o livro está longe de ser um primor ou mesmo atraente para um ocasional leitor. Sua narrativa é confusa, enfadonha e  inconsistente. Suas diversas traduções desvirtuaram o sentido de muitas passagens originais, que mesmo que tivessem sido fielmente adaptadas, seriam consideradas anacrônicas perante a sociedade moderna. As histórias contadas para explicar a origem do universo, do ser humano e a trajetória do povo escolhido por Deus – supostamente verídicas – alternam entre o inverossímil e o completamente fantasioso. Uma boa quantidade de tempo é perdido apresentando as árvores genealógicas de famílias hebraicas, o que era fundamental para a sociedade patriarcal baseada em clãs existente à época de sua elaboração, mas que não tem a mínima importância atualmente. E existem diversas contradições no texto, não só entre as diferentes versões do livro, mas em seu próprio conteúdo, como pode ser conferido aqui.

Mas então, por que, mesmo com tantas deficiências e defasagens, a Bíblia conseguiu chegar à época atual conservando tamanha influência perante a sociedade? Para tentar compreender esse fenômeno, primeiro é necessário conhecermos um pouco mais a respeito do livro sagrado e de sua história.

A ESTRUTURA DA BÍBLIA

A bíblia é composta por duas partes principais, o Antigo Testamento, que narra acontecimentos ocorridos antes do nascimento de Jesus Cristo, e o Novo Testamento, que conta os fatos havidos após este evento.

Cada um dos testamentos, por sua vez, é dividido em livros. O antigo possui 46 livros (39 na versão dos protestantes/evangélicos), e o novo possui 27 livros.

Cada grupo de livros da Bíblia tem um propósito específico. Os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, por exemplo, formam o pentateuco (conhecido pelos judeus como Torá), que descreve a criação da Terra e define as leis do povo hebreu. Os 12 livros seguintes contam a história deste povo em busca da terra prometida por Deus, e assim por diante. O quadro a seguir mostra resumidamente a função de cada grupo de livros (clique na figura para aumentá-la):

A HISTÓRIA DA BÍBLIA

Segundo as doutrinas defendidas pela maioria dos religiosos, a Bíblia é a própria palavra de Deus, direcionada à humanidade. No entanto, até mesmo eles admitem que essa palavra só pôde ser colocada no papel por intermédio de homens comuns.

De acordo com a tradição judaico-cristã, cada livro da Bíblia foi escrito por um autor específico, supostamente inspirados pela sabedoria divina. Os profetas seriam, então, uma espécie de secretário que transcrevia o que Deus ditava em suas mentes. O Pentateuco teria sido escrito pelo profeta Moisés, os Salmos pelo rei Davi, e assim por diante. No entanto, a maioria dos pesquisadores da história da Bíblia afirma o contrário: que cada um dos livros foi escrito por diferentes autores, em diferentes épocas sendo, em seguida, compilados em um só texto.

É provável que  o primeiro esboço do que viria a se tornar a primeira parte da Bíblia tenha sido escrito por volta do século 10 a.C., em algum lugar do Oriente Médio, na então chamada Terra de Canaã. Alguém pegou um pedaço de uma planta importada do Egito – o papiro – e começou a escrever uma história a respeito da origem do universo e do homem. Essa história depois foi sendo ampliada, rasurada, revista e editada por diversos outros autores que deram continuidade a esse trabalho.

Região de Canaã, onde surgiram os primeiros esboços da Bíblia.

Canaã não era um Estado organizado, e sim uma região sem fronteiras definidas, por onde passavam várias tribos diferentes. Isso explica a semelhança entre algumas passagens bíblicas supostamente escritas pelos hebreus, e outras histórias fantásticas que rondavam a região, advindas de outros povos. Um exemplo é a história de Noé, que apresenta uma notável semelhança com a Epopéia de Gilgamesh, um poema originado na antiga Mesopotâmia (atual Iraque) que conta a história do semideus Gilgamesh e que contém uma passagem que menciona uma enchente que devasta o mundo, e da qual algumas pessoas são salvas construindo um barco.

É claro que a semelhança entre essas histórias, além de outras que compõem outras culturas, e as narrativas contadas na Bíblia, não significa que o livro sagrado seja uma mera compilação de lendas plagiadas de outros povos. Apenas sugere que os autores dos textos que deram origem à Bíblia eram pessoas variadas, e que alguns deles tinham contato direto com outras culturas da região, sendo inclusive possível que alguns deles até mesmo fossem integrantes de outros povos.

Essa multiplicidade de autores também explica o fato de a Biblia possuir diferentes estilos de escrita ao longo de seus textos. Isso é notável já nos dois primeiros livros, Gênesis e Êxodo. O deus criador da Terra é chamado por dois nomes diferentes, ora sendo tratado por Javé ou Jeová (Yahveh, no original), que seria um tratamento mais informal, ora sendo chamado de Senhor ou Deus (Elohim, no original), que seria um modo mais formal de se dirigir a ele. Segundo os estudiosos do assunto, o fato de haver no mínimo dois autores responsáveis por essas partes seria uma explicação plausível para essa discrepância, já que é improvável que àquela época um mesmo autor fosse se referir a uma divindade de maneiras diferentes em um mesmo texto.

No ano de 589 a.C., Jerusalém, a capital dos hebreus, foi conquistada pelos babilônios, e boa parte de sua população foi levada como prisioneiros de guerra para território babilônico, onde fica o atual Iraque. Algumas décadas depois, o imperador babilônico Ciro, que possuía certa tolerância religiosa, liberou os hebreus, que foram voltando aos poucos para Canaã, porém com sua fé transformada pelo contato com os babilônicos, que seguiam uma religião chamada de masdeísmo.

O masdeísmo, ou Zoroastrismo, religião fundada pelo profeta Zaratustra na antiga Pérsia (atual Irã) em meados do século VII a.C. exerceu considerável influência nos textos bíblicos. A doutrina do Zoroastrismo foi notavelmente a base de praticamente todo o mito da Criação presente na Bíblia, pois foi ela quem concebeu idéias como a de um ser poderoso criando o mundo em seis dias e descansando no sétimo e a formação de um paraíso na Terra, onde foram colocados dois seres humanos que de lá foram expulsos em seguida, e onde também havia uma cobra traidora. O Zoroastrismo também foi o precursor de ideias que viriam a ser fundamentais para a mitologia bíblica, como a do monoteísmo, a ressureição, a dicotomia da luta entre o bem e o mal e a vinda de um messias como prenúncio do juízo final.

Zaratustra, profeta fundador do Zoroastrismo

Representação artística de Zaratustra, profeta fundador do Zoroastrismo

A versão final do Pentateuco tomou forma por volta do século IV a.C., quando um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que editaram os livros já existentes e escreveram a maior parte do Deuteronômio, Números e Levítico, inclusive a famosa parte dos 10 testamentos. A partir dessa reforma, Jeová começa a ganhar um ar belicoso, vingativo e sanguinário, ordenando, inclusive, o extermínio de cidades inteiras em seu nome. Atos que soariam abomináveis a qualquer ser humano moderno parecem aceitáveis ou até mesmo estimulados pela entidade divina hebraica. Aparentemente até mesmo lançar ursos selvagens para destroçar crianças inocentes, cujo único pecado teria sido conhecer outras crianças que zombaram da careca de um profeta:

Então, subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns rapazes pequenos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo, sobe, calvo.

E, virando-se ele para trás, os viu e os amaldiçoou, no nome do SENHOR; então, duas ursas saíram dos bosques e despedaçaram quarenta e dois daqueles pequenos.

II Reis 2, 23-24

Encantador esse deus bíblico, não? Esse rancor gratuito atribuído ao todo poderoso pode ser reflexo do momento histórico que os hebreus passavam, em constantes guerras com seus vizinhos babilônicos e assírios. Assim, o clamor bélico e sanguinário presentes nesta parte das escrituras seria uma forma de estimular os hebreus a se unirem em torno de sua fé contra inimigos que mereciam o desprezo até mesmo de um suposto deus verdadeiro.

A essa altura, a fé também já exercia um grande papel no controle social ao estipular regras que deveriam ser seguidas por todos, algumas para manter a coesão do grupo (como a que proibía o casamento entre hebreus e não-hebreus), outras que supostamente visavam impor a aplicação de atitudes saudáveis (como as que vetavam a ingestão de certos alimentos) e outras que pareciam ser meramente cerimonialistas, sem nenhuma função prática aparente (como a que proibía o uso de vestimentas cerzidas com dois tecidos diferentes).

Por volta de 220 a.C. o conjunto de livros sagrados dos hebreus já estava finalizado e foi realizada então a primeira tradução completa do que hoje é chamado de Antigo Testamento, do hebraico para o grego, na cidade de Alexandria, no Egito, feita por ordem do rei Ptolomeu II. Supostamente realizada por 72 sábios judeus, essa versão ganhou o nome de septuaginta. Além da tradução para o grego, também surgiram versões do Antigo Testamento em aramaico, que era a língua mais comum na região à época.

Após dois séculos, a versão em aramaico do Antigo Testamento (que à essa época obviamente não era conhecido por esse nome) tornou-se muito popular, sendo a mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (atuais Israel e Palestina). E foi nesse ponto que surgiu uma nova personagem bíblica que iria mudar totalmente os rumos dessa história: Jesus Cristo.

E este é um assunto que será tratado em breve, na segunda parte desse post.

ATUALIZAÇÃO: Veja a parte seguinte do post aqui.

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