Continuação do post anterior. Veja a primeira parte aqui.
A VINDA E A VIDA DO MESSIAS
Paramos a história da Bíblia em um ponto que viria a trazer fundamentais mudanças não só para as escrituras, mas para a própria humanidade. A vinda de Jesus Cristo ao mundo.
As escrituras sagradas hebraicas que circulavam por Canaã já previam a chegada de um Messias que iria governar o mundo e devolver a paz aos homens. Para os cristãos atuais, esse Messias foi o próprio Jesus Cristo, o filho de Deus, gerado pelo Espírito Santo.
A comunidade judaica, porém, não reconhece Jesus como o Messias prometido, e continua aguardando sua vinda. Por isso os judeus não admitem o novo testamento como parte das escrituras sagradas, já que ele foi escrito com base nos ensinamentos de Cristo. Para eles, os textos sagrados se resumem ao Antigo Testamento e ponto. Aliás, para os judeus nem faz sentido o uso desses termos – Antigo e Novo Testamento – já que em seus textos sagrados, que eles chamam de Tanakh, só há o conteúdo do primeiro.
Para os cristãos, no entanto, a chegada do Messias ao mundo é uma narrativa universalmente conhecida. Pare qualquer adepto do cristianismo na rua e pergunte a ele como foi o nascimento de Jesus e você provavelmente vai ouvir essa história: no dia 25 de dezembro do ano um, uma estrela brilhante surgiu no céu e guiou os três reis magos a um presépio em Belém, onde Maria, uma virgem fecundada pelo próprio Espírito Santo, deu à luz um menino, na manjedoura, entre os bichinhos do presépio. Então, cada um dos três reis magos entregou um presente a Jesus. Depois a sagrada família teve que fugir para o deserto porque o rei Herodes mandou matar todas as crianças com menos de dois anos, com medo de perder o trono para o futuro rei dos judeus.
É uma bonita história. Pena que esse relato tão conhecido não tenha ocorrido exatamente desta maneira segundo o próprio livro sagrado dos cristãos.
Na verdade, se utilizarmos somente a Bíblia como fonte, fica muito difícil dizer como teria ocorrido exatamente o nascimento de Cristo. Em mais um exemplo das contradições existentes nos textos bíblicos, os evangelistas relatam o fato de maneira distinta. Marcos e João nem chegam a falar do nascimento de Jesus, somente de sua vida adulta. E os relatos de Lucas e Mateus apresentam divergências entre si, alguma irreconciliáveis.
A visita dos famosos três reis magos, por exemplo, não é mencionada nos evangelhos. Mateus relata a visita de magos (sem mencionar o número deles) e Lucas fala simplesmente que pastores no campo vão venerar a criança após receberem a notícia de um ser angelical. O massacre de crianças inocentes narrado por Lucas e supostamente comandado por Herodes após o nascimento de Jesus não só não é encontrado em Mateus, como em nenhum outro evangelho e nem mesmo em qualquer outra fonte histórica da época.
Muitas outras diferenças podem ser encontradas entre uma narrativa e outra. Lucas menciona uma visita de anjos à Maria e à sua vizinha Isabel que não está em Mateus. Mateus relata a fuga para o Egito, a Santa Família desviando da Judeia no retorno a Nazaré, tudo isso ausente em Lucas. Lucas tem o nascimento de João Batista, o censo de César, a viagem a Belém, a manjedoura e a estalagem, os pastores, a circuncisão, a apresentação no templo e o retorno para casa imediatamente depois – tudo isso ausente em Mateus.
Poderia-se argumentar que na verdade cada evangelista está contando uma parte da história. E de fato, a narrativa que se ouve todo mês de dezembro ao se comemorar o natal parece ser uma fusão desses dois evangelhos, com a combinação de detalhes de um e de outro, de modo a criar uma história mais ou menos harmoniosa. Mas o problema é que, ao se fazer isso, se está na verdade criando um terceiro relato dos acontecimentos, que difere dos dois originais, e ignorando os detalhes que não podem ser conciliados entre os dois, como, por exemplo, quem era o governador local, que segundo Mateus era Herodes, e segundo Lucas, Quirino.
Além dessas diferenças, alguns detalhes hoje aceitos como fatos pela maioria dos cristãos nem mesmo são citados na Bíblia. A data de nascimento de Jesus, por exemplo, não é expressamente anunciada em local nenhum. Estudiosos das escrituras apontam que o mais provável é que Jesus tenha nascido próximo ao mês de abril. No entanto, há um motivo para se comemorar o natal no dia 25 de dezembro, do qual eu tratarei futuramente. Até mesmo o ano em que Jesus nasceu não é fácil de ser determinado, graças aos diferentes sistemas de marcação de datas utilizados após o fato, mas é quase certo que, apesar de o nosso calendário atual se basear em seu nascimento, o próprio Cristo tenha nascido entre os anos 6 e 4 antes de Cristo.
Muitas outras partes do novo testamento apresentam o mesmo problema. Ao serem comparadas lado a lado, diversas passagens que deveriam ser iguais ou pelo menos compatíveis entre si, apresentam discrepâncias. A genealogia de Jesus, seu batismo, milagres realizados, a duração de seu ministério, detalhes de sua morte: todos esses fatos e vários outros apresentam versões diferentes, algumas delas diretamente contraditórias, ao longo de todo o novo testamento.
E esse fato é facilmente explicado. Jesus, a exemplo de outros grandes pensadores, como Sócrates e Buda, não deixou registrado por escrito nenhum de seus feitos e ensinamentos. Aliás, alguns historiadores argumentam que isso seria até impossível, pois afirmam que Jesus provavelmente era analfabeto (assim como 90% dos habitantes da região à época). E é bem provável que seus seguidores, quase todos de origem e profissões humildes, a maioria pescadores, também o fossem. A propria Bíblia deixa claro que pelo menos Pedro e João eram iletrados (Atos 4, 13). Especula-se que Mateus, por ter sido cobrador de impostos para o Império Romano, fosse o único dos apóstolos alfabetizado em aramaico, mas mesmo assim, isso dependeria de sua posição hierárquica na administração imperial.
E de qualquer maneira, isso nem é tão relevante, já que todos os textos existentes no Novo Testamento foram escritos décadas ou séculos após Jesus e seus apóstolos terem passado pelo mundo. Inclusive os evangelhos. Apesar de cada um deles receber o nome de um apóstolo, é provável que nenhum dos textos tenha sido efetivamente escrito pelo seguidor que o batiza. O que nos leva a uma interessante pergunta…
QUEM ESCREVEU O NOVO TESTAMENTO?
Nos primórdios de seu surgimento, o cristianismo já era perseguido. O Império Romano, que dominava quase todo o Oriente Médio, considerava os cristãos subversivos por não cultuarem os seus deuses oficiais. Foi nesse clima de perseguição que os primeiros cristãos começaram a colocar no papel as histórias a respeito de Jesus Cristo, que até então eram passadas entre os adeptos da nova religião apenas através da tradição oral.
Por conta dessa atmosfera hostil, dificilmente as pessoas que escreviam a respeito dos ensinamentos de Jesus se arriscavam a serem identificadas assinando sua obra. Os evangelhos, por exemplo, foram todos escritos anonimamente. Os nomes de seus autores foram adicionados depois (“o evangelho segundo Mateus”), provavelmente por dois motivos: para evitar a perseguição aos seus verdadeiros autores e, principalmente, para assegurar aos leitores que as histórias ali contadas eram verdadeiras, tendo sido passadas às futuras gerações por testemunhas oculares dos fatos. No entanto, através da análise dos textos evangélicos originais é possível deduzir algumas coisas a respeito de seus reais escritores.
Em primeiro lugar, há um consenso entre os estudiosos da Bíblia de que quase a totalidade dos textos dos evangelhos originais foram escritos em grego, não em aramaico, como o antigo testamento. A maior parte dos seguidores do cristianismo à essa época não falava grego, eram falantes de aramaico, iliterados e de classe baixa. É bem provável também que os autores originais vivessem fora da Palestina, ou que pelo menos não tivessem muito familiaridade com a região, devido às incongruências geográficas e à ignorância a respeito dos costumes judeus existentes nos textos.
O fato de terem sido escritos por pessoas provavelmente bem instruídas e falantes de grego, de terem estilos diferentes entre si e de que os autores dos textos raramente identificam a si próprios faz com que seja improvável que a maioria dos livros do novo testamento tenha sido escrita por quem se afirma que foi. A maior parte dos estudiosos da bíblia hesita em rotular os textos bíblicos do novo testamento como fraudes – alguns preferem até o eufemismo “pseudoepigráfico”. Mas isso é uma questão de semântica. Sob qualquer ponto de vista é isso que eles são: fraudes. Um grande número de livros dos primórdios do Novo Testamento foram escritos por autores que alegavam falsamente serem apóstolos para enganar os leitores e fazê-los aceitar suas obras e os pontos de vista que defendiam.
Mas então, quem eram, afinal de contas, esses autores?
A verdade é que ninguém tem como saber exatamente quem escreveu o novo testamento. Dos 27 livros que o compõem, somente 8 deles podem ser atribuídos com certo grau de segurança aos autores que se supõem tê-los escritos. Nos primeiros séculos da era cristã o cristianismo estava se espalhando pela Europa, conquistando adeptos no Império Romano. Então é provável que os autores das histórias a respeito de Jesus e de seus discípulos tenham sido cidadãos do Império Romano, pertencentes à uma classe social relativamente alta e que tinham interesse em converter seus compatriotas à nova religião que eles mesmos haviam acolhido.
O problema é que naquela época os livros não eram redigidos como são hoje em dia. Eles não eram reunidos em um único tomo, organizados, numerados, e encadernados. Na verdade eles não passavam de um amontoado de papiros avulsos, então uma mesma história poderia ter dezenas ou centenas de autores, que depois era unificada como uma colcha de retalhos. Quando muito, os textos da época eram enrolados em forma de pergaminho. Nesse caso então, se você quisesse saber o que seu Deus diz a respeito de algo ou consultar um pedaço específico das escrituras sagradas, tinha que desenrolar um pesado pergaminho até encontrar a passagem desejada. Imagine-se hoje em dia tendo que desenrolar um rolo de papel sempre que quisesse consultar uma parte de um texto…
Estas particularidades influenciaram diretamente no conteúdo do texto bíblico. Para manter a circulação das histórias a respeito de Jesus, a despeito dos extravios e deteriorações dos textos, os evangelhos eram continuamente copiados e recopiados por membros da igreja. Só que, como isso era feito manualmente por várias gerações de copiadores, diversas alterações acabavam sendo introduzidas nos textos originais, às vezes por descuidos, às vezes por erros de traduções e às vezes propositalmente, para se apoiar o posicionamento de quem transcrevia as cópias .
Um exemplo disso é a passagem em que Jesus salva a mulher adúltera do apedrejamento (João 8, 3-11). Segundo especialistas, esse trecho foi inserido no evangelho de João por volta do século 3, por algum escriba. Isso porque o cristianismo estava divergindo do judaísmo e o apedrejamento de adúlteras era uma das leis judaicas presentes no Pentateuco. Assim, podia se passar a ideia de que, a partir de então, os ensinamentos de Cristo haviam superado até mesmo as leis judaicas.
Por volta do século 4, os textos sagrados começaram a tomar a forma de códice, um conjunto de folhas encadernadas mais parecido com os livros atuais. Isso fez com que o controle do conteúdo da Bíblia fosse mais fácil de ser mantido. Junto a esse fato, um outro acontecimento inesperado deu uma nova cara ao livro sagrado e de quebra ainda fez com que o novo movimento religioso deixasse de ser um mero culto e se transformasse na religião mais importante da cultura ocidental: a conversão de um imperador romano ao cristianismo. Mas isso já é um assunto para o próximo post…
ATUALIZAÇÃO: Veja a última parte do post aqui.